bookends

um dia eu acordei e o mundo tinha acabado.
(não que eu tivesse percebido; ninguém nunca percebe até se deitar à noite e a ficha cair de que morreu na noite anterior.)
me levanto da cama e olho ao meu redor para ver uma casa em ruínas. paredes dilapidadas, escombros e destroços por todos os lados, e algumas coisas ainda em chamas. o ar tem gosto de cinzas.
me pergunto pra onde tudo que eu lembrava teria ido, mas não me incomodo em procurar por nada (algo me dizia que no dia seguinte tudo estaria em um lugar novo).
abro os guarda-roupas e busco algo para me vestir, mas nenhuma das roupas me serve mais. olhar para elas me faz sentir como um lagarto que trocou de pele—aquela já não sou eu.
me olho nos cacos de um espelho e não consigo reconhecer meu rosto. eu era assim mesmo? rugas parecem encaixar nos meus olhos, mas não estou velha, e sei que aquele reflexo sou eu, mas não se parece comigo. eu ensaio um sorriso e algo é familiar, como se eu já tivesse feito isso antes. se fiz, não me lembro.
há um caderno repousando nos restos de uma mesa de cabeceira. algumas das páginas estão queimadas, quase ilegíveis, e quando leio seus conteúdos, reconheço minha caligrafia, mas nenhuma das palavras foi escrita por mim. continuo folheando e encontro o que procurava: minha letra, enrolada ao redor de textos e poemas que carregam a minha face como o espelho não conseguiu. me parece que os estou escrevendo de novo- vejo a luz que entrava pela janela e sinto o peso da caneta na minha mão.  sim, digo a mim mesma. fui eu quem criou isto. finalmente algo de que me lembro. abraço o caderno e o levo comigo.
atravesso o que um dia foi o portal para o meu quarto e investigo o mausoléu. cada centímetro daquele chão empoeirado é um instinto e eu desvio de móveis que não estão mais ali, passo por cômodos inexistentes e chamo por vozes que há muito não respondem. cada segundo de silêncio é estranhamente inesperado – eu poderia jurar que havia mais alguém aqui.
espio através de uma janela destruída e vejo as casas ao redor. todas elas parecem perfeitamente normais, mas ninguém olha na minha direção, como se meu lar em escombros não fosse algo novo ou digno de atenção. isso também não me é estranho. me esgueiro para fora, a luz do sol forte demais em meus olhos, e vejo o mundo como se nunca o tivesse visto antes: cada detalhe me deixa perplexa, mas eu sei que já vi cada uma daquelas coisas antes. tudo é familiar e novo.
sei como funciona essa vida; ela me vem através de memórias musculares, mas eu nunca fiz nenhuma dessas coisas antes. falo com pessoas que não conheço e que não me conhecem, e todos fingimos que conhecemos uns aos outros, mas só o que temos são memórias em comum. mas eu reaprendo como as coisas funcionam, e faço a vida pertencer a mim. passo a conhecer aquelas pessoas, e agora temos memórias que são de fato nossas. faço promessas que não sei se serei capaz de cumprir, mas que também prometo tentar. me encaixo no meu corpo, e quando me olho no espelho, reconheço a mim mesma.
chego em casa no fim do dia, e tudo voltou ao normal. as paredes estão reconstruídas, e os móveis foram repintados e colocados onde eu gostaria que estivessem. no meu quarto, tudo está limpo e o ar tem gosto do café que tomei com meus novos velhos melhores amigos. as roupas foram colocadas ali por mim, e cabem perfeitamente. sento-me na cama e pego novamente o caderno. tenho certeza de que vou lembrar para sempre do que escrevo (não aprendi ainda).
precisei morrer para que finalmente as coisas fossem como devem ser, penso. quando me deito, não demoro a pegar no sono.
não percebo que morri durante a noite. e quando acordo, o mundo acabou.


(inspirado por isso aqui)

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